Breaking Bad – Walter White morreu pelos nossos pecados

Cultura do mês – Série

Apesar de ter estriado há mais de uma década, a série criada por Vince Gilligan continua com elevada reputação e os fãs não param de aumentar. Já gerou um filme, “El Camino”, e uma série spinoff, “Better Call Saul”.


Já lá vão 13 anos desde que o mundo ouviu pela primeira vez a história do homem de 50 anos, professor de físico-química do ensino secundário, diagnosticado com um cancro terminal, que começa a produzir droga para garantir o dinheiro que a sua família necessita para sobreviver após a sua morte.

Na primeira cena do episódio piloto somos imediatamente lançados para o caos, estamos dentro de uma velha caravana no meio do deserto. Na porta da caravana, estão cravados cinco buracos de bala, no chão, dois cadáveres, um homem inconsciente no banco do pendura com uma máscara respiratória na cara. Ao volante está um homem só em cuecas brancas e com máscara igual ao do seu copiloto inconsciente. O homem de cuecas está em pânico. Faz da areia do deserto uma pista de rally. Está a fugir de algo. Não conseguimos perceber, mas supomos de algo terrível, quer dizer, olhem para o cenário em que estamos, cada elemento desta cena é tão confuso que cada um carece de uma explicação individual. Quando perde o controlo do veículo de recriação e se enfaixa numa vala, o condutor sai em pânico da caravana. Tira a máscara. Acalma-se. Sustem a respiração. Volta para dentro do veículo imobilizado. Tira a arma da mão de uns dos cadáveres, e do porta luvas, uma carteira e uma câmara. Sai da caravana e volta a respirar. Pousa a carteira no chão de areia vermelha e começa a gravar.

Ouvimos pela primeira vez o nome do homem que provaria ao mundo o quão a espécie humana pode ser libertada das correntes que a sociedade usa para nos aprisionar, correntes em forma de limites e rótulos que nos imobilizam de despoletar o nosso potencial. O homem, de seu nome, e de cuecas, Walter Hartwell White (Bryan Cranston).

Breaking Bad centra-se na evolução de Walter White ao longo das cinco temporadas da série, através da sua passagem de pai aborrecido dos subúrbios para rei do submundo do crime de Albuquerque no estado de New Mexico. Para além de ser professor de físico-química, Walter White tem qualificações para muito mais que a via do ensino secundário, um facto que se vem a comprovar ao longo da série. Compreendemos que Walter é um verdadeiro génio da química. Vemos, através do uso deste poder para a produção das metanfetaminas mais puras do mercado, o orgulho e o ego a consumirem Walter ao ponto de nunca mais emergir do pseudónimo de Heisenberg, ficando submerso nesta versão obscura e divina de si mesmo para sempre. Apesar de Walter ser uma personagem com um grande nível de profundidade, as personagens que o rodeiam também não ficam a trás. Saul Goodman (Bob Odenkirk) o advogado fraudulento; Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks),  o “responsável de segurança”; Gustavo “Gus” Fring, (Giancarlo Esposito) o “legítimo” homem de negócios e Hector “Tío” Salamanca (Mark Margolis), o debilitado e “ex-Don” de um cartel mexicano. São detalhadas estas personagens, carismáticas e bem construídas. São personagens completamente diferentes entre si, mas todas se escondem em plena vista (há exceção do advogado Saul Goodman).  Aparentam ser homens comuns na nossa sociedade, homens “normais”. Mas que no submundo do crime destacam-se num autêntico jogo de sobrevivência. A diferença deles para Heisenberg é que não se deixam consumir pelo ego, pela cede de conquistar o poder absoluto a todo o custo. Saul Goodman sabe o seu lugar assim como Gus e Mike. Walter não.

De uma perspetiva niilista e no grande esquema das coisas, o universo reduz o significado da nossa existência. A Terra enquanto planeta é insignificante, enquanto espécie somos ainda mais insignificantes. No entanto, mais pequeno e ridículo que a nossa existência enquanto espécie é a nossa existência enquanto indivíduos isolados, e esta noção de indivíduos isolados recebe mais preocupação e importância de nós próprios do que o orgulho que temos enquanto comunidade e espécie. Se não tivermos orgulho em nós mesmos, mais ninguém o terá. Walter White é como todos nós um individuo isolado, ele sente essa solidão provocada pela noção da sua insignificância no infinito universo que existe fora da estratosfera terrestre. Tem a sua família, com a sua esposa grávida Skyler (Anna Gunn) e o seu filho adolescente com paralisia cerebral Walter Jr. (MJ Mitte). A família White mantém uma relação com a irmã de Skyler, Marie (Betsy Brandt) e o seu marido Hank Schrader (Dean Norris), agente da DEA (brigada antinarcóticos). 

Como pode um homem, sentir-se só, quando tem um núcleo familiar tão caloroso? As origens da solidão de Walter vêm da falta de orgulho que tem em si próprio. Sente que a sua vida não tem qualquer tipo de rumo. Não satisfez, ao longo da sua vida, o seu verdadeiro potencial. No coração de cada um de nós, no coração do Homem comum, existe potencial com um toque divino que a qualquer momento pode acordar. A personagem interpretada por Bryan Cranston sente (e está) aprisionada. Aprisionada à ideia que ele tem de si próprio e a noção que Walter tem de si próprio é alimentada pela noção que os outros têm dele, a noção que a sociedade utiliza para rotular Walter como um homem fraco. A sociedade rotula Walter White por fraco. Em sociedade, estamos submergidos em modo automático, o que não nos permite observar muito fora de nós mesmos, não nos permite parar e olhar para o que o próximo sente ou está a sentir. O problema aqui é que Walter está a par que o rumo da sua vida está a fugir-lhe entre os dedos, deixando que o seu futuro seja ditado pela sociedade onde a sua família também teria um contributo para o rebaixo de Walter. A vida de Walter pode estar repleta de sinais de uma vida confortável, mas na verdade não é. Walter merecia melhor. Merecia um filho saudável, um emprego que correspondesse ao seu génio, um genro que não fizesse constantemente pouco de si, merecia uma mulher, que apesar de o amar, não fizesse com que Walter se sinta sem poder de escolha sobre todos os aspetos da sua vida. Bem, pelo menos é isto que Walter sente. E o que a série nos dá a sentir, ao início, pelo menos. 

Da perspetiva cinematográfica, a série de 2008 apresenta um estilo incomum no formato televisivo. Com evidências de Quentin Tarantino que passam desde os planos à construção do enredo. Algumas cenas da série são recriações das cenas dos filmes de Tarantino. Desde “Pulp Fiction” a “Jackie Brown” e até mesmo de “Reservoir Dogs”.

A câmara dá espaço e tempo para os atores trabalharem a profundidade das suas personagens. A cor e a simetria desempenham um importante papel, tanto no cenário como na construção da identidade da própria personagem. Cada cor representa um estado, ou um sentimento. A personagem de Walter inicia a sua jornada com roupas beges e castanhas, mas conforme fica mais negro começa a usar roupas pretas. O seu genro Hank usa roupa laranja ao longo da série, onde o laranja é um símbolo de perigo. Neste caso, Hank é um perigo para Walter pois o seu emprego como agente de uma brigada antinarcóticos causa muitos problemas à vida de crime que a personagem de Bryan Cranston tenta evitar. O mesmo acontece com Skyler e a cor azul, com Jesse e o amarelo, Marie com roxo, etc.

Quando lhe é diagnosticado o cancro pulmonar, quebra-se a fina barreira que separava o lado oprimido de Walter do lado que lhe permitiria atingir o máximo potencial humano. Walter vivia sob os ideais de uma sociedade ultrapassada, uma sociedade em que a máxima ditada era algo do género “Esforça-te, porta-te bem, segue as regras sempre, sem questionar”. Num mundo onde mais e melhor se tornam o mecanismo para a sobrevivência da nossa identidade, a sociedade mais avançada onde a personalidade pacata e antiquada de Walter White se encontrava tornaram-no “fraco” aos olhos de terceiros. Walter é um homem de 50 anos, mas como o seu antigo aluno da escola de Albuquerque e parceiro no crime, Jesse Pinkman (Aaron Paul), diz, Walter White parece ter 60 anos. Esta frase, dita com tom trocista, retrata bem como a sociedade vê Walter. Alguém ultrapassado, sem mais nada para oferecer.

Walter White cumpre a sua função principal, cria empatia com a audiência. Todos nós nos identificamos com Walter, pelo menos uma vez na vida já nos sentimos oprimidos, presos ou rebaixados. Já nos sentimos injustiçados e queremos que haja justiça, dado que nos autoproclamamos vítimas. O problema é que na vida real tal não acontece, pessoas com muito boas atitudes sofrem, e por vezes os que nos fazem mal escapam impunes. Não há lei no mundo, Deus parece que nos deixou por nossa conta. Façamos o seguinte exercício, vamos supor que vivemos num universo paralelo, onde há um Deus que existe sob a forma de leis de justiça, face às nossas ações praticadas na Terra. Leis que beneficiem o bem e castiguem o mal. Mas essas leis estão adormecidas e Deus habita no Homem. E o que o Homem precisa para acordar o Deus em si é apenas um incentivo. Incentivo esse foi para Walter White um cancro pulmonar que o levou numa viagem a compreender que é Walter que está no controlo, e não os outros, não a sociedade. Walter tornou-se uma espécie de herói, uma espécie de messias para os fracos, os oprimidos e os pontapeados. 

Agora sob o pseudónimo de Heisenberg conquista o submundo do crime, destruindo-o sem se aperceber e demonstrando a todos os fracos e oprimidos o que se é capaz de fazer quando deixamos de seguir as regras da sociedade e começamos a reger-nos pelas nossas próprias regras. Se Walter simboliza algum tipo de divindade, Jesse Pinkman simboliza o lado puro da humanidade. Jesse está lá para demonstrar o ser simples, sendo apenas humanos. Jesse é filho de uma classe média-alta, que nunca se identificou com os ideias que o rodeavam. Envergou para um estilo de vida diferente, onde chegou mesmo a fabricar as suas metanfetaminas, porém, Jesse era um bom rapaz, com bom coração que nunca deveria ter virado criminoso e Walter alguém que, pelos vistos, sempre teve a veia criminosa, sem nunca se ter apercebido. Para todos aqueles que alguma vez na sua vida sentiram que os outros, que a sociedade, rebaixaram o seu potencial. Walter, ou Heisenberg, torna-se o justiceiro no meio do caos. Ele cria e ele controla, ele gere o seu próprio caos e atribui uma linha com significado à sua vida. Walter White, o homem que nunca fumou um cigarro na vida, tem cancro do pulmão. Um sinal demasiado irónico para ser deixado passar por despercebido. O momento da sua morte foi na verdade a hora do seu nascimento. Walter renasceu e tornou-se um mártir para nós, os que já se sentiram injustiçados. Curioso, o livro mais vendido do mundo tem uma história semelhante.

-Tiago Góis